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quarta-feira, 1 de outubro de 2008

O tocador de Alaúde, Caravaggio.

[...] A voz, dizem eles, não pode ser de um só sexo. Ela não seria de essência divina, se respeitasse os limites biológicos dados ao corpo humano. Ela não seria o espelho da alma, se não permanecesse submissa à repartição do masculino e do feminino. A música tem como missão reconciliar o que o pecado original compartimentou. O homem antes do pecado não era ao mesmo tempo homem e mulher? Adão continha Eva em sua costela. [...]

[...] A música tem por função divina nos trazer para a época anterior ao pecado. Se os violinos, as flautas e os saltérios são os atributos tradicionais dos anjos, é porque seria inconcebível que o paraíso não ressonasse com cânticos e salmos. [...]

[...] Refinamo-nos à autoridade de Isidoro de Servilha e de seu discípulo Rabin Maur, que enumerou, em seu De instituitione clericorum, as características que definem uma voz apta ad animas confortandas. Ela não deve ser nem rugosa nem rouca nem destoante, mas bem cantante (canora), agradável, limpa (liquida) e elevada. Resumamos em uma palavra o que ela não deve ser e o que ela deve ser. Ela não deve ser exclusivamente masculina, ela deve possuir elementos femininos que emocionem (commovere) os ouvintes e vençam as resistências (animos compungere). [...]

[...] - Esse tocador de alaúde – concluiu – é, na realidade, um cantor homem, se nós nos referirmos ao seu estado civil, porém mais do que um homem – ou menos do que um homem, segundo o ponto de vista. Seu status excepcional de musico torna impossível defini-lo por meio de seu gênero biológico. A ambiguidade do seu sexo é justificada pela sua missão divina. Vejam como ele abre a boca e prolonga a nota empurrando a língua contra os dentes, para que seu canto suba até o céu. [...]

[...] o pintor não considera um concerto de vozes e instrumentos um simples divertimento, e não o conta entre o número de “vaidade”. A música é para ele simplesmente um dos caminhos em direção à perfeição cristã.[...]

[...] Tu sai ch'io t'amo, anzi t'adoro
Ma non sai già che per te moro.
[...]

Trecho de “A corrida para o abismo”, pg 238.

A Corrida para o Abismo - O Gênio Caravaggio
Dominique Fernandez 
Editora: Bertrand Brasil  
Ano: 2005  
Estante: Literatura Estrangeira

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